quinta-feira, 19 de maio de 2011

O velho e a lareira tardia - Ondjaki

“vou morrer sem nunca ter sentado perto de uma lareira”,

o velho falou com misto de adormecimento e angústia, sentia que a morte lhe lambia a ponta dos pés, tinha as bochechas frias e as unhas duras assim de impossíveis mais de serem cortadas

“não seja por isso, inventa-se já aqui um pedaço de fogo”, disseram-lhe

e assim fizeram, ajuntaram os madeirumes, galhos e secas substâncias, sentaram-no perto do local escolhido, lá fora, perto da noite e do céu estrelado, uma jovem buscou os óleos cansados e começou a massajar-lhe os pés, primeiro os doloridos calcanhares, depois o centro com a necessária pressão, a ponta dos dedos, e finalmente o dorso enrijecido pelas caminhadas solitárias na montanha

“se eu tivesse idade de agradecer, agora dava-lhe um beijo…”, murmurou o velho

a jovem sorriu em missão de continuar, os outros nada disseram, iam acender o fogo com um qualquer combustível químico

“não, assim não”, falou o velho, “vamos mesmo no método tradicional, galhos pequeninos e uma boa caixa de fósforos”

sorriram os mais-novos, fizeram-lhe a vontade, devagar, em cuidado e sopro, lá em cima um vento todo solitário fazia cuidado de embalar as nuvens, visão para os últimos olhares do velho, jogo de esconder e revelar o corpo e o desenho das estrelas, sabedoria dele só, improvisada, nada lógica, de saber ver o caminho das estrelas de ir e voltar, evitar os lugares das guerras, buscar água quando faltava, caçar se necessário fosse, ir dar notícias em jeito de também as receber

“quando há muita guerra, as pessoas esquecem de dar boas notícias”, revelava em fraca voz, “eu tinha assim que inventar tudo: o seu filho está bem, manda dizer só é que tem saudades, a sua filha casou, morreu um mais-velho, o ano passado quase nem choveu ainda, coisas assim que as pessoas precisam de ouvir, sentem-se mais perto da vida, tudo inventado… pra fintar a guerra, sabe?”, o velho falava a sério, os mais-novos pensavam que era o seu derradeiro delírio

“descanse, mais-velho, descanse”

continua su http://www.buala.org/pt/mukanda/o-velho-e-a-lareira-tardia?

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